A meu ver um dos maiores equívocos da humanidade tem sido a delegação da experiência. Mesmo que essa prática não seja nova, me parece que na contemporaneidade ela se solidifica por trás de um discurso científico monopolizante da verdade.
Digo que não é nova porque se remontarmos há certo tempo esse discurso monopolizante vinha da instituição política e monárquica detentora de poder que era da Igreja durante a Idade Média. Foi essa uma das críticas e o estopim da Reforma Protestante: que as pessoas abdicando desse aparato institucional como mediador pudessem acessar uma experiência religiosa mais genuína posto que direta.
Bem, hoje quem domina o discurso monopolizante é a ciência. Que roupa usar, que comida pode ser digerida e quando, qual postura se deve ter no corpo para cada ambiente frequentado, como o sexo deve ser conduzido, qual música e qual cor são ideais para um melhor humor, como manter esse bom humor no trabalho e até mesmo como defecar. Para tudo que foi dito, entre centenas de outras coisas, existe pelo menos um especialista que vai apontar como você está fazendo tudo errado. E que esse erro é o culpado pela sua infelicidade.
E pra isso não é preciso ler os últimos compêndios ou assinar aquela revista científica norte-americana: basta acessar a internet ou a televisão que sempre, invariavelmente, vai ter alguém ou alguma coisa ditando como você deve viver a sua vida para ser feliz e saudável.
Se por um lado essa lógica de desenvolvimento tecnológico alucinante acoplada a necessidade imediata de transmissão de saberes é a grande responsável por grandes feitos da humanidade, o que deve ser respeitado, ela traz consigo a lógica perversa de restrição da produção de conhecimento.
Esse totalitarismo do conhecimento acumulado abafa de maneira assustadora a capacidade de criatividade e espontaneidade daqueles que não sabendo dos meandros e modos de operação dessa esfera social são jogados ao limbo dos incultos, estúpidos, primitivos ou mesmo selvagens.
Usando a metáfora de um emaranhado de linhas, a experiência da vida como é vivida não se apresenta, e nem pode, de maneira uniforme, clara e objetiva: pelo contrário, uma visão mais crítica de como percebemos o mundo indica que ele é muito mais complexo do que qualquer objetivação seria capaz de dar conta.
Indo mais além, a objetivação que fazemos do mundo é em sim um empobrecimento atroz da realidade por nós experienciada diariamente justamente porque não temos capacidade cognitiva, no modo objetivo em que insistimos em propagar, de apreender o que nos é dado.
Ora, sendo todo tipo de objetivação um empobrecimento, tomar essas objetivações como detentoras da verdade é de uma estupidez até mesmo em nível objetivo. Todo conhecimento é adquirido através da fugacidade de uma experiência.
Em outras palavras, aceitar como única verdade aquilo que nos é imposto pela ciência e a razão, por doutores e especialistas, é enjaular todo o mundo de possibilidades e conhecimentos que podem ser adquiridos através de novas experiências. É transformar um emaranhado de linhas em uma reta. Muitas delas que só podem ser descobertas através das negações do senso comum mais generalizado.
A todo aquele que almeja adquirir conhecimento é preciso antes experimentar novas formas de defecar, de se vestir, de se alimentar, enfim, de viver.
Experimentar é preciso!
Muito bom. Concordo plenamente.
ResponderExcluirO pior é que as pessoas ainda intensificam esse "governo" da ciência, ignorando que a mesma trabalha com probabilidades, que por sua vez dependem da experiência!
É um paradoxo constante, visto que a ciência condena tanto a ignorância.
Muito bom.
ResponderExcluirhttp://derrocada.wordpress.com/2012/05/16/homo-sapiens-sapiens-sapiens/
Saudações.
Ao mesmo tempo, penso que a pós-modernidade, da qual não sou adepto completo, emerge em resposta a isso. A fé acrítica na verdade científica é questionada, por exemplo, por Foucault, que quer desvelar os aparatos e instituições de construção da verdade e de que forma esta é utilizada para exercício do poder. A construção cotidiana que é feita em nossas mentes da ciência institucionalizada como detentora da verdade objetiva busca excluir como possibilidade de verdade tudo o que se encontra fora da ciência oficial, tudo que foi descartado por meio de experimentos metódicos supostamente infalíveis. O que, me parece, está longe de ser politicamente neutro.
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