segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ah, Paulo Freire...




Hoje acordei com a notícia, compartilhada pelo twitter do padre Júlio Lancellotti, de que três jovens incendiaram com querosene um casal de mendigos que dormia na rua, na cidade de Sorocaba.

Lembrei-me, na hora, daquele acontecimento deveras marcante em minha infância: o assassinato cruel do índio Galdino, em 1997, por cinco adolescentes da mesma estirpe. E pensei em quantos jovens de classes abastadas educados na barbárie não teriam realizado práticas semelhantes entre aquele episódio de 16 anos atrás e este mais recente. Pensei sobretudo, em quanto miseráveis - já degradados em sua dignidade por um modelo de sociedade que produz e reproduz sistematicamente a riqueza às custas da miséria - não foram despidos do pouco de humanidade que lhe restava por formas de rejeição e intolerância que se difundem diariamente. Pensei, ainda, em quantos destes não tiveram suas vidas arrancadas, demolidas, desfiguradas, desumanizadas, seja pelo Estado, pelos interesses da especulação imobiliária ou pela pura e simples barbárie cultivada em um mundo que retroalimenta o utilitarismo e a reciprocidade material como padrão das relações sociais.

Então lembrei de uma breve leitura, também marcante, que fiz há alguns anos: é Paulo Freire, em sua carta "Do Assassinato de Galdino Jesus dos Santos", publicada na coletânea Pedagogia da Indignação. Partilho ela com os leitores.

Penso que crer-se humano, em casos como esses, é indignar-se diante da indignidade.


"Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó, que dormia tranqüilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando. Que coisa estranha. Brincando de matar. Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma inutilidade. Um trapo imprestável. Para sua crueldade e seu gosto da morte, o índio não era um tu  ou um ele. Era aquilo, aquela coisa ali. Uma espécie de sombra inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva.
 
É possível que, na infância, esses malvados adolescentes tenham brincado, felizes e risonhos, de estrangular pintinhos, de atear fogo no rabo de gatos pachorrentos só para vê-los aos pulos e ouvir seus miados desesperados, e se tenham também divertido esmigalhando botões de rosa nos jardins públicos com a mesma desenvoltura com que rasgavam, com afiados canivetes, os tampos das mesas de sua escola. E isso tudo com a possível complacência quando não com o estímulo irresponsável de seus pais.
 
Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que decresceram em lugar de crescer.
 
Penso em suas casas, em sua classe social, em sua vizinhança, em sua escola. Penso, entre outras coisas mais, no testemunho que lhes deram de pensar e de como pensar. A posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar. Penso na mentalidade materialista da posse das coisas, no descaso pela decência, na fixação do prazer, no desrespeito pelas coisas do espírito, consideradas de menor ou de nenhuma valia. Adivinho o reforço deste pensar em muitos momentos da experiência escolar em que o índio continua minimizado. Registro o todo poderosismo de suas liberdades, isentas de qualquer limite, liberdades virando licenciosidade, zombando de tudo e de todos. Imagino a importância do viver fácil na escala de seus valores em que a ética maior, a que rege as relações no cotidiano das pessoas terá inexistido quase por completo. Em seu lugar, a ética do mercado, do lucro. As pessoas valendo pelo que ganham em dinheiro por mês. O acatamento ao outro, o respeito ao mais fraco, a reverência à vida não só humana mas vegetal e animal, o cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valoração dos sentimentos, tudo isso reduzido a nenhuma ou quase nenhuma importância.
 
Se nada disso, a meu juízo, diminui a responsabilidade desses agentes da crueldade, o fato em si de mais esta trágica transgressão da ética nos adverte de como urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas. Não creio na amorosidade entre mulheres e homens, entre os seres humanos, se não nos tornamos capazes de amar o mundo. A ecologia ganha uma importância fundamental neste fim de século. Ela tem de estar presente em qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador.
 
Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-la sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor.
  
Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.
 
Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos.

Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros..."

domingo, 17 de março de 2013

Nunca fui bom em ser homem


Quando se é um homem você é cobrado, constantemente, a afirmar e reafirmar essa posição se quiser continuar sendo julgado como um. Há, me parece, uma lista de deveres masculinos, metafísica e universal, que ratifica se você merece ou não o júbilo e privilégio de ser um deles. 

Nunca fui bom em ser homem. O quesito imprescindível é a falta de sensibilidade, o não chorar é apenas uma das suas formas: é socialmente vetado ao homem expressar qualquer tipo de sentimento bom em público. Só se pode xingar, odiar e bater nas coisas e pessoas. Ser mau, insensível e estúpido. É por isso que os meninos puxam o cabelo ou provocam as meninas que gostam: é o único meio de interação que aprenderam. Elogiar ou fazer carinho é papel delas.

A cobrança começa antes mesmo de você fazer a distinção entre macho e fêmea. Antes de entrar na escola você já tem interiorizadas as primeiras regras da tal lista universal como, por exemplo, não usar nada rosa, gostar de brincar de carrinho e assistir desenhos de ação.

Meus problemas já começaram aí: eu nunca gostei de brincar de carrinho. Acontece que isso nunca foi uma opção, afinal fosse aniversário, natal, páscoa ou dia das crianças eu ganhava carrinhos o que fazia as pessoas que me davam presentes supor que eu gostava muito e eles foram crescendo e tomando conta do meu quarto em progressão geométrica. Eu também odiava desenhos de ação. Achava Dragonball irritante, trocava de canal correndo já na musica de abertura, Power Rangers sem sentido nenhum e Cavaleiros do Zodíaco a coisa mais entediante na face da terra.

Isso não seria um problema se tratasse só de um gosto pessoal, mas tem a tal cobrança que eu já mencionei e ela começa de maneira muito pesada e abrupta lá no jardim de infância. Todos os coleguinhas eram, ou aparentavam ser, fascinados por carrinhos e desenhos de ação. Era esse o tema da mochila, do caderno, da lancheira, da borracha e até das meias deles. Seia, gocu e pauer renger vermelho: esse era o universo masculino infantil no final dos anos 90.  Além disso, a brincadeira principal do intervalo consistia em se bater até alguém chorar. Obviamente eu estava a margem disso tudo.

O tempo foi passado e minha incapacidade de convivência no universo masculino continuava: eu achava tão imbecis que eu nem tinha as fitas do Street Fighter e do Mortal Kombat e queria me enforcar com o fio do controle quando resolviam jogar NBA 97 ou FIFA 98.

Aliás, aí está o grande referencial do mundo masculino: o futebol. Se você estivesse no ensino fundamental e quisesse ser o cara popular da escola você tinha que jogar bola bem. Eu odiava futebol ou qualquer outro tipo de esporte. Enquanto todos corriam felizes pra educação física eu arrastava meu corpo pelo pátio da escola: diferente do intervalo, ali futebol era obrigatório. Louvado seja o professor novo que vendo o meu sofrimento e angústia em quadra me propôs ser o reserva do time (cargo que eu mantive fielmente por anos).

Eis que o colegial vai chegando, com ele os hormônios, e surge na lista o item que passa a ocupar a primeira posição da lista universal e a subjugar todos os itens anteriores para o resto da vida de um homem: a mulher.  É a quantidade delas que você teve algum tipo de relação que passa a ser o medidor da sua eifcácia como um homem.

É nessa fase que os homens param de jogar bola na escola, afinal já bastam as espinhas:  nenhuma menina vai querer chegar perto de um cara suado depois do intervalo. Dada essa condição, os homens resolvem fazer algo até então inédito que é de usar o tempo livre pra conversar com seus colegas.

Depois de quinze anos lidando com bola, carrinho, explosões e ainda com uma bomba de hormônio dentro de si o assunto não poderia ser outro: a rodada do campeonato, o carro novo que saiu e a colega que foi de shortinho. Nem preciso comentar que nenhum desses temas me estimulava a falar, o que me deu a fama de “quieto” como se o meu silêncio fosse timidez e não uma resposta à mediocridade da conversa.

“Ah, tudo bem, isso é só uma fase de quem está se afirmando socialmente”, você pode dizer, mas não é. Essa fase formada por volta dos quinze anos de idade permanece intacta para todo o sempre porque é o ideal do universo masculino. Todo homem sabe que, ao iniciar uma conversa com outro homem, conhecido ou não, de qualquer idade em qualquer lugar, esses serão os temas a serem abordados se quiser fazer a conversa render.

O velhinho na fila do pão certamente vai começar a falar com você sobre o jogo do Santos no último domingo, assim como se você estiver na rua comprando uma água o vendedor vai comentar sobre o ronco do motor do carro que passou ou um colega  sobre os atributos físicos das moças transeuntes. E todos eles têm como certeza absoluta de que você vai reagir a esses comentários e interagir prontamente, afinal é um homem.

Até hoje eu não sei em que ano a seleção foi campeã da copa, não faço ideia do que é um impedimento, sou mais sentimental do que a música dos Los Hermanos, só dirijo por obrigação, consigo contar nos dedos os nomes de carros que conheço e mesmo sendo heterossexual nunca vou conseguir descrever uma mulher como se fosse um pedaço de carne. Sou um fracasso como homem.