sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sobre House, M.D.

Nessa semana, chegou ao final a série que atingiu a notável marca de programa televisivo mais assistido da história, segundo o Guinness. Em um episódio agridoce, como definiu seu criador, House, M.D. pôs ponto final a oito temporadas de drama, mistério e comédia no mundo médico. A seguir, traçarei minhas impressões sobre a epopéia do médico ranzinza e misântropo.

Em primeiro lugar, acredito que o grande mérito de House, M.D. foi seus personagens. Ou, pelo menos, os principais. House, Wilson, Foreman, Chase e Thirteen, durante sua participação na série, explicitavam marcas do passado meticulosamente construídas - e reconstruídas mediante situações do presente e expectativas do futuro. Suas personalidades não foram estáticas ao longo da série: como na vida real, seus traços identitários foram dinâmicos. Contudo, essa evolução dos personagens foi complexa: sem metanóias e continuidades inverossímeis, a ambiguidade moral e as descontinuidades foram coerentemente marcantes. House, por exemplo, não caminhava em um traço continuamente decadente à autodestruição: tinha altos, baixos e períodos estáveis - sempre coerentes com os acontecimentos retratados na série. Ao mesmo tempo, não era simplesmente antissocial ou egoísta. Sua misantropia era fundamentada por uma trajetória complexa de vida - com traumas e glórias na infância e na vida adulta - e em certos momentos encontrava válvulas de escape, como com Stacy, Cuddy, Wilson e na bela sequencia no início da sexta temporada, pós-internação. Assim, a ambiguidade moral foi marcante em diversos personagens, inclusive House, fazendo com que fosse dificil taxá-lo simplesmente de egoísta (quando, nessas válvulas de escape, teve ações altruístas) ou imoral (quando possuía um quadro moral próprio e alternativo, mas não ausente). O próprio racionalismo exacerbado não era contínuo e pleno: ao mesmo tempo que defendia um ateísmo ardoroso perante certos pacientes, inquietava-se diante da possibilidade de um sentido para a vida. A cena em que coloca uma chave de fenda na tomada para ver o que seria uma experiência de quase-morte foi bastante emblemática, bem como o diálogo com suas várias facetas travado no episódio final.
O mistério constante e a racionalidade típica de Sherlock Holmes - inspiração para a série - na resolução de problemas também foi um atrativo, assim como um humor sarcástico, de recusa ao politicamente correto, à polidez, à hipocrisia. Um humor crítico e inteligente, fosse dirigido a questões pontuais dos personagens ou a questões existenciais da vida humana. A relação dialética, de contrariedade e complementariedade, entre House e Wilson também foi particularmente interessante. Mais até, eu diria, que a relação entre os inspiradores Holmes e Watson. Fossem conceitos sociológicos, House e Wilson seriam, respectivamente, conflito e consenso, estratégia e entendimento, ação racional-teleológica e ação racional-valorativa, racionalidade instrumental e racionalidade comunicativa. O desenrolar da série conduziu a uma relação de interdependência e choque constante, na qual duas formas de saber e viver opostas se conflitam, se completam, se provocam, de forma que grandes diálogos foram essenciais para compreender a trajetória dos personagens. A última temporada culminou essa relação extremamente delicada em um final surpreendente. Claro que toda essa trajetória foi possibilitada por dois grandes atores - Hugh Laurie e Robert Sean Leonard - que agora estarão livres para brilharem mais nas telonas. Olivia Wilde foi outro destaque de atuação, e já deu indícios do que poderá fazer na sétima arte com um bom trabalho em Tron - The Legacy. Por fim, Jesse Spencer evoluiu de maneira assombrosa ao longo da série - assim como seu personagem - e o último episódio levanta a dúvida se poderá se iniciar um eventual Chase, M. D., o qual não me agradaria.

A coerência e verossimilhança observada na construção dos personagens não se estende a todos os aspectos da série. Aquele hospital, evidentemente, está fora de qualquer realidade. A eterna impunidade de House, a organização e o sentido de seu departamento, o abuso do método de tentativa e erro, bem como outros tantos aspectos são completamente irreais. Creio que esse é um dos pontos falhos da série - mas, caso não fosse assim, a trama seria outra. Outro problema foi a repetição de exatamente o mesmo modelo de episódio por todos esses oito anos. A proposta foi eficaz nas três primeiras temporadas, mas acabou por se desagastar. É verdade que alguns dos melhores episódios foram a partir da quarta, como o comovente duplo House's Head/ Wilson's Heart (4ª), o interessante Broken (6ª), o dramático Bombshells (7ª) e o tenso Nobody's Fault (8ª). Mas, em todos esses casos, foi necessário fugir do esquema padrão. Talvez se houvessem mais episódios fora do modelo, a série teria segurado melhor a audiência a partir da sexta temporada. Fiquei incomodado, ainda, com as duas personagens introduzidas na última temporada, que pouco colaboraram para a trama.

[Atenção: spoilers a seguir] Quanto ao final: esperava algo diferente, mas não posso dizer que não gostei. Foi coerente com os personagens, mantendo a descontinuidade e a complexidade da evolução das identidades. Achei que o paciente poderia ter sido explorado mais profundamente, enquanto personagem, constituindo um alter-ego mais provocativo ao protagonista. Outro problema da reta final da série foram algumas pontas soltas que deixaram de ser amarradas, como a questão do irmão do Wilson e a conturbada e significativa relação de Foreman com sua família. Além disso, a ausência de Cuddy dentre as alucinações que representaram os vários aspectos da personalidade de House no episódio derradeiro foi bastante incoerente, já que sua relação conturbada com a ex-chefe marcou o último aprofundamento depressivo do anti-herói. De todo modo, creio que Kutner, Amber, Stacy e Cameron demonstraram bem a complexidade do perfil psicológico de House. Respectivamente, parece-me que simbolizaram: o espírito curioso e racional; o sarcasmo e contrariedade diante da vida humana; a resignada esperança no amor e no sentido da vida; o amor próprio que beira o egoísmo. Este último foi o que House precisou enfrentar, em seu interior, com mais afinco para tomar a decisão que marcou as últimas cenas. E aqui cesso meu semi-spoiler.

Foram essas minhas impressões ao longo desses oito anos. Gostei da série e, apesar da tristeza pelo fim da trajetória, sinto que acabou no momento adequado. E que venham novos seriados!



Um comentário:

  1. Excelente texto!
    Concordo com tudo, a falta de Cuddy e o paciente final foram o pior do último episódio, que de forma geral, foi muito bem conseguido. Realmente a fórmula que se foi criando, aquela rotina, foi o que acabou por afastar o público ao longo dos anos, e com esta personagem dava para fazer muito mais do que aqueles episódio normais, apesar de alguns pacientes marcantes.
    A surrealidade de algumas situações como as que referes no hospital foi uma das coisas menos bem conseguidas, muitas vezes House fez coisas que soavam a exagero e que deixavam a série menos credível.
    Mas no final, foram oito bons anos, "House" vai ser sempre um ícone nas séries de televisão e House umas das melhores personagens de sempre. Vou ter saudades.

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