sábado, 14 de novembro de 2009

Bolsa família e a cultura da meritocracia


Boa tarde, leitores.

Sem promessas de postagens mais freqüentes ou discussões temáticas, estamos de volta. Ou talvez alguns de nós, apenas. Que seja. Não renunciaremos ao delicioso trabalho de nos comunicarmos com a chamada blogosfera e com os internautas que nela circulam.

No último e longínquo escrito deste espaço, esbocei um genérico quadro histórico da degradação do trabalho na América Latina, onde o fantasma da estrutura colonial forja, até hoje, uma distribuição de renda vergonhosa, à qual não parece haver saída. Como tentativas de amenizar a situação sem resolvê-la, no Brasil, forteleceram-se no governo FHC e, principalmente, no governo Lula, políticas - por muitos denominadas "assistencialistas" - de repasse financeiro. O programa mais famoso nesse sentido é o polêmico Bolsa Família.



Digo que o programa é polêmico porque, por um lado, o fato de se receber sem trabalhar desperta a ira da alta classe média e, por outro, essa mesma classe média se vê cada vez mais numerosa devido à distribuição de renda promovida pelo atual governo, à qual o programa citado colabora. Consequencia: enquanto alguns acusam o governo Lula de produzir uma classe de folgados - que vão se acostumar a ganhar sem trabalhar e não quererão mais sair da pobreza por seus próprios esforços - , outros têm um sua mesa um prato de comida que não teriam de outra maneira.

Longe de intentar discutir o caráter político-eleitoreiro do programa (que é existente e não pode ser ingenuamente ignorado), venho questionar o porquê da revolta dos mais abonados em relação à distribuição direta de renda. A resposta que não consigo parar de pensar é: em nossa sociedade, enquanto sociedade capitalista, estamos presos a um critério meritocrático para justificar a estratificação social.

O que isso significa? Ora, na Idade Média, a estratificação era justificada por um critério religioso, por meio de um uso distorcido e interessado dos escritos bíblicos. No capitalismo, a estratificação é justificada pelo mérito. Quem realmente quer, quem realmente se esforça, consegue prosperar. Levando a sério tal argumento, o Bolsa Família aparece como um obstáculo, um gerador de uma cultura oposta, na qual o critério não seria o mérito, mas a necessidade.

Mas, então, quais os problemas da meritocracia, afinal? Aponto três: em primeiro lugar, como estamos falando de uma sociedade com imensas discrepâncias socio-economicas, alguns nascem com mais condições de acesso à cultura, à educação de qualidade, a uma alimentação descente que outros e, portanto, esses poucos têm mais condições de prosperar. Em segundo lugar, alguns nascem com melhores condições mentais de assimilação e aprendizagem que outros. Um dislexo, por exemplo, tem menos chances de prosperar economicamente e muito dificilmente se tornaria presidente de uma grande empresa. Em terceiro lugar, há o aspecto motivacional, cujas condições objetivas são costumeiramente subestimadas. A motivação (no caso, a motivação para ver que é possível superar as barreiras sociais e ascender) é tributária de fatores psicossociais, dependendo das experiências vividas pelo indivíduo. Um exemplo ultra-simplista: alguém que se acostumou a ver seus vizinhos e parentes trabalharem muito, ganharem pouco e não ascenderem, dificilmente acreditará que é possível consegui-lo.

Concluindo: dado que a superação dos três problemas mencionados (socioeconômico, cognitivo e motivacional) independe, em grande medida, da vontade subjetiva do indivíduo, tendo limites objetivamente determinados, temos que a meritocracia na sociedade capitalista aparece com o objetivo de manter uma dada estrutura social. O problema é que o critério meritocrático já foi internalizado de tal forma, inclusive pelas classes subalternas, que é difícil nos libertarmos de tal concepção e pensarmos o mundo a partir do critério da necessidade.

Encerro com um exemplo: por que tantos criticam o José da Silva, que recebe o Bolsa Família e ganha dinheiro sem mérito, e poucos falam, por exemplo, do filho do Abílio Diniz, que, sem trabalhar, foi sempre milionário e pôde se dar ao luxo de passar sua juventude competindo num esporte elitista sem maiores preocupações? Por que o não-trabalho do rico é visto como merecido e o não-trabalho do pobre é visto como folga?

É uma das muitas perguntas para refletirmos a maneira como vemos as coisas que se passam sob nosso nariz.

Agradeço a atenção.

Casmurro