domingo, 5 de junho de 2011

Mais uma vez, sobre Política e Religião (1)

Boa tarde, camaradas.

O debate político-filosófico é de fundamental importância nesses tempos polarizados que vivemos no Brasil. Na medida em que fortalecem-se, na sociedade, demandas de cunho liberal (no sentido cultural do termo), sai também do armário um contingente conservador e anti-laicista, em uma verdadeira reação às possibilidades de conquista dos grupos sociais "minoritários". Intesifica-se, assim, um debate de concepções sobre as relações entre Estado e cultura (mais especificamente, entre Estado e éticas religiosas) que, no mais das vezes, tem extrapolado os limites da argumentação lógica e filosófica e configurado-se em ofensa e intolerância. Para dialogar com meu colega da última postagem, vou me valer também de expoentes acadêmicos.

As discussões acerca do machismo e da homofobia - desde "sempre" presentes na sociedade ocidental, mas que ganham destaque frente às discussões políticas recentes - costumam ser analisadas ora à luz da laicidade do Estado, ora à luz da interpretação bíblica que, segundo alguns, fundamenta tal machismo e tal homofobia. Pessoalmente, penso que as duas dimensões da religião (uma propriamente religiosa e outra propriamente política) são indissociáveis, de forma que é justamente por uma construção consistente (nem sempre coerente) do discurso teológico que instituições religiosas agregam capital político e ganham força para manter a universalização de sua ética particular, ou seja, ganham força para continuar negando a laicidade do Estado.

No caso das concepções machistas e homofóbicas que vigoram, já há muito, no discurso de um cristianismo conservador, vale a pena refletir essas duas dimensões. Ou seja, vale a pena refletir, e criticar, tanto a interpretação teológica que produz essa concepção conservadora, quanto suas decorrências no debate político. Assim, ao invés de me debruçar sobre uma das dimensões, procurarei criticar a ambas.




A crítica religiosa

Alguns revoltosos em relação ao cristianismo conservador, que busca impor sua ética por força de lei, vêm realizando queima de Bíblias e utilizando o argumento de que "A Bíblia é homofóbica e machista". No limite, contudo, tais revoltosos utilizam exatamente o mesmo argumento dos cristãos fundamentalistas: o de que a submissão feminina e a privação de igualdade aos homossexuais têm pricípios bíblicos inequívocos. A diferença é que, para uns, a Bíblia deve se converter em lei, enquanto para outros deve ser ignorada (ou, no caso, queimada)*. Sobre a questão, meu argumento é o de que a homofobia e o machismo na Bíblia não são inequívocos e que a leitura bíblica contemporânea permite (não só permite, como efetivamente produz) conclusões diversas.


Bíblia homofóbica?

Em primeiro lugar, o argumento de certos cristãos de que a homossexualidade é "contra a natureza" é completamente falacioso. Toda a humanidade, enquanto construção cultural, faz-se na dominação da natureza. Toda religião, enquanto construção social, é contra a natureza, afinal. É da "natureza" humana ser "contra a natureza". Tal argumento, aliás, nem é propriamente bíblico, mas achei que valia a pena mencioná-lo.

Em segundo lugar a Bíblia é composta de 73 livros que, por serem de autores diferentes e tendo sido escritos em tempos diferentes (entre +/- 800 a.C e 100 d.C.), muitas vezes expressa visões de mundo distintas entre si (um dos muitos exemplos: Paulo, em Fl 1, 18-19, enfatiza que a fé basta para a salvação; Tiago, em Tg 2,14-26, diz que a fé sem obras é morta). Há poucos momentos em que a homossexualidade é abordada, o que ocorre nos livros do pentateuco (Lv 18,22 e 20,13), a Torá judaica, bastante questionada por Jesus, e em alguns momentos das cartas de Paulo(o mais radical dos líderes cristãos da Igreja Primitiva), como em 1Cor 6,10. O tema, assim, é bastante lateral nas escrituras como um todo, sendo ausente, inclusive, dos Evangelhos, o "coração" da Bíblia.

Em terceiro lugar, os Evangelhos trazem Cristo tratando o amor universal como ensinamento principal. Sempre que Jesus necessita sintetizar seus ensinamentos, fala em "amar ao próximo como a si" ou "amar ao próximo como eu vos amo", etc. (Mt 5,44; Mc 12,33; Lc 6,27 e 6,35; Jo 13,34 e 15,12-17). E o exemplo mais vivo é com a adúltera reprimida pelos religiosos da época e acolhida por Cristo (Jo 8, 1-10). Madalena, mesmo tendo agido em desconformidade com os ensinamentos divinos, é tratada com dignidade por Cristo. Neste caso, para Cristo, mesmo aquele que não está cumprindo a lei de Deus, ou quiça nem acredita nela, não é merecedor de violência. Com a Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-36), Cristo não só mostra que o tratamento digno do outro deve transpor fronteiras étnicas e culturais, como também denuncia a hipocrisia religiosa de seu tempo (o sacerdote passa perto do sujeito que sofre e não o ajuda). Por fim, relembro o famoso "oferecer a outra face" (Lc 6,29), uma imagem que aparenta submissão, mas que é um forte exemplo do princípio cristão da não-violência.

Em suma, ainda que em certos momentos alguns personagens bíblicos (não o principal) recomendem a relação heterossexual, a questão da homossexualidade não pode ser tratada como inequívoca na Bíblia, uma vez que aparece muito lateralmente e por poucos personagens. Ademais, e o mais importante, ainda que se leia inequivocamente que a Bíblia, como um todo, recomenda a heterossexualidade, não é possível lê-la como homofóbica, dado que homofobia supõe violência, desrespeito, desamor, rebaixamento da dignidade humana, enfim, a degradação humana do outro. Os Evangelhos, referência principal do cristianismo, acentuam o imperativo ético do amor universal; pregam o reconhecimento da dignidade humana mesmo daquele que não segue as leis de Deus; e defendem o princípio da não-violência. A Bíblia, assim, não é, em si, homofóbica, mas passagens isoladas de seus contextos (internos e externos) podem ser apropriadas em favor da homofobia.



Bíblia machista?

Gastarei menos tinta com esse argumento. Se analisarmos a Bíblia com base no conceito de machismo, exterior a ela, É CLARO QUE A BÍBLIA É MACHISTA. Toda ela foi escrita no contexto de uma sociedade patriarcal, de clara dominação masculina. O termo "machismo", aliás, é recente bem como a contestação massiva dessa dominação. É completamente anacrônico aplicar o termo "machista" para analisar um livro de uma época em que o questionamento da dominação masculina não estava na ordem do dia. Se assim for, Sócrates, Platão, Marx e tantos outros também são machistas, porque se enquadravam na cultura de aceitação não-questionada da dominação masculina. Da mesma forma, Caio Prado Jr. (em sua juventude) e Domingo Faustino Sarmiento, dois dos principais pensadores da América Latina, seriam profundamente racistas, uma vez que possuem escritos que ratificam os argumentos da dominação branca sobre os negros. Vamos, assim, desprezar todos esses escritos? Tais conclusões se baseiam em uma leitura completamente anacrônica, aplicando um conceito recente a uma realidade antiga.

Em síntese, enfatizo que essa questão não estava colocada por aquela sociedade. Contudo, em uma sociedade em que o modelo tradicional de relação entre homem e mulher vem sendo questionado, uma exegese cristã deve pensar o contexto dos escritos bíblicos e os princípios inerentes aos ensinamentos, para então atualizar as ações. Repetir, sem reflexão exegética, as ações do passado é fundamentalismo. Vale ressaltar que o princípio da não-violência e do reconhecimento da dignidade do outro, que ressaltei ao falar da homofobia, é certamente aplicável também às mulheres (e o próprio exemplo que dei do Evangelho se trata de uma mulher) de forma que não está na Bíblia, em hipótese alguma, a violência machista.




A crítica política do conservadorismo religioso ficará para a próxima postagem. Agradeço muito meu camarada Adriano Godoy por levantar esse debate tão relevante na atualidade brasileira, tendo me inspirado a continuá-lo.

Abraços,

Enrico


*Atualizado em 06/06 às 09h50

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