sábado, 6 de novembro de 2010

Intolerância Religiosa (V)


Infelizmente (ou felizmente) o final de ano consome todo e qualquer tempo livre de nós, universitários brasileiros. Por esse e outros motivos a minha presença por aqui tem sido escassa (acredito que a ausência de meus colegas seja pelo mesmo motivo). Pois bem, nos últimos dias estou entretido em meio a um levantamento de notícias para minha pesquisa de iniciação científica. Tendo como foco o episódio do "chute na santa", tenho lido jornais do ano de 1994, 1995 e 1996 majoritariamente.



Em meio a essas leituras me deparei com um artigo do então deputado federal José Genoíno (PT) que, ao meu ver, é bastante atual. Como não tenho o tempo necessário pra escrever algo digno, amenizo a minha ausência reproduzindo o artigo logo abaixo.

Jornal do Brasil, 30 de outubro de 1995

Guerra Santa e tolerância
José Genoino


O fim da Guerra Fria e a desvalorização do conflito ideológico parece que estão abrindo espaço para outras formas de intolerância neste final de século. Alguns teóricos chegam a projetar que o século 21 será recortado por conflitos civilizacionais. Estrategistas ocidentais vêem no islamismo o novo "grande mal" que ameaça os fundamentos da civilização greco-romana-cristã. A exacerbação dos conflitos étnicos é outra manifestação de intolerância, de desorientação em relação a valores universais e de anomia. O desespero social, o individualismo anti-social, a perda de sentido da vida em sociedade política etc., são ingredientes que alimentam o conservadorismo e todas as formas de fanatismo. Nesse final de século, as pessoas parecem estar mais dispostas a se refugiarem no seu gueto a buscar alternativas de reconstrução de uma comunidade política democrática. A chamada "guerra santa", envolvendo a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Católica está carregada por esses condicionamentos que marcam o presente.

Aparentemente, o conflito entre as duas igrejas não teria razão de ser. Ambas são herdeiras da mesma orientação e comungam os mesmos valores religiosos e civilizacionais. Mas, há séculos, foi-se o ecumenismo dos primeiros cristãos. Todo o cristianismo institucionalizado em igreja, a exemplo de qualquer outra religião, repudia o ecumenismo na medida em que prega a sua crença como a única verdadeira. Por princípio, a religião institucionalizada, ao absolurizar a sua "verdade" como a verdade, detrata um dos direitos fundamentais da pessoa humana que é o da liberdade de convicção. Se as igrejas se toleram uma às outras é graças à imposição do Estado.

No Brasil sempre houve uma ligação entre Estado e Igreja. A Igreja Católica ocupou e ocupa espaços, influencia decisões de governo a partir da ótica religiosa, estabelece vínculos valorativos com as normas institucionais e pressiona pela vigência do ensino religiosa nas escolas. A própria constitucionalização do nome de Deus expressa a intervenção da igreja nos assuntos do Estado. Mais recentemente, várias igrejas se lançaram numa renhida disputa pelo controle dos meios de comunicação. Rádio e TVs são instrumentos poderosos de influência e de poder político. A partir deles, as igrejas não interferem apenas nos assuntos de fé, mas articulam interesses políticos em favor de grupos, partidos e candidatos. Num Estado laico, defensor do princípio do pluralismo religioso, como deve ser o Estado democrático, essa ingerência das igrejas nos assuntos políticos é algo inaceitável e perigoso. Corre-se o risco de politização das disputas religiosas.

Quando as igrejas se lançam na disputa pelo poder, fere-se a religiosidade dos indivíduos, pois esta se fundamenta na experiência intuitiva da fé e a disputa pelo poder desloca o respeito ao pluralismo em nome do autocentrismo. A intromissão de uma igreja ma disputa de poder não representa apenas um desrespeito a outras religiões, mas também aos indivíduos que não professam nenhuma religião. A agressão a símbolos religiosos também agride o direito humano da liberdade religiosa e estimula o sectarismo, a intolerância e o absolutismo da crença. A reiteração dessa prática agressiva, seja por palavras ou atos, principalmente quando assume dimensões de massa, pode estimular o extravasamento de outros instintos agressivos da população.

Diante da potencialização da intolerância religiosa, o poder político, particularmente o Legislativo, deve monitorar esse conflito e, se necessário, instituir nova legislação mais rígida para coibir as manifestações de intolerância. Acredito que é preciso também reexaminar a relação das igrejas com os meios de comunicação e a instrumentalização da política que fazem de rádios e TVs. Quanto às igrejas, espera-se que sejam tolerantes umas com as outras e que respeitem a liberdade de consciência dos indivíduos não apenas porque os preceitos legais assim exigem.

A tolerância vincula-se ao respeito ao direito que cada um tem de professar a sua própria verdade e a sua liberdade de convicções. Como bem ensina Noberto Bobbio, a tolerância é um método universal de "convicência civil" e, acrescente-se, religiosa. Só ela permite a recusa consciente à violência, a instauração da confiança na razão, caminho pelo qual as idéias podem triunfar pela luz iluminadora do diálogo. Se há uma verdade, ao menos no âmbito social e político, ela é uma verdade compartilhada a partir de opiniões diversas. A intolerância verbal e física manifesta a impotência de argumentos e uma falsa confiança nas próprias crenças de quem recorre a esses métodos para fazer valer suas opiniões.

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