quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Sigismundo

E dando uma pausa na "Intolerância Religiosa", um conto, ainda em fase de criação:


Dia de Comício em uma pequena cidade do interior paulista. A cidade hoje, provavelmente, não possui mais que 7 mil habitantes.
O coronel Figueiredo, dono de grandes propriedades de terra na região, está se candidatando a sua reeleição para deputado estadual e precisa massivamente do apoio maciço do povo da sua cidade para continuar no poder. Embora seja muito poderoso, nunca foi muito bom de microfone e, para tanto, há anos contrata Sigismundo para subir no palanque, em seu lugar, enquanto fica com o sorriso amarelo ao lado do caboclo.
Sigismundo é de família simples e possui um pequeno sítio que chama de Demerval Lobão, nome de sua cidade natal, próxima de Teresina. É deste sítio que Sigismundo tira a subsistência de sua família inteira, composta por sua mulher e mais sete filhos. Contudo, muitas vezes, seja por causa da seca, seja pela falta de recursos, não consegue prover todo o necessário para seu lar. Desde pequeno sempre foi de contar histórias com maestria, geralmente na frente das vendas das cidades, onde todos paravam para lhe ouvir e ficavam envolvidos pelas suas histórias, suas interpretações, as lições de seus contos, com a propriedade com que falava cada frase; era sempre um verdadeiro espetáculo. Então, fazendo uso deste ‘dom’ é que ele complementava sua renda familiar, participando de festas na cidade ou indo, no fim do dia, para a venda local. Muitas das histórias que contava eram de sua própria invenção, sempre baseadas nas lutas tristes dos povos retirantes, na força das pessoas pobres, nas suas crenças, na simplicidade do povo que lutava para viver.
Há alguns anos, em uma destas apresentações, estava de passagem o coronel Figueiredo, que ficou entusiasmado pelo potencial do caboclo, chamando-o então para trabalhar com ele em seus comícios, apresentações, discursos, etc. Além de bom orador, Sigismundo, por ser conhecido de tempos da população, já era respeitado por todos.
O coronel então começou a lhe pagar um salário mensal, mesmo quando não precisava de seus serviços, apenas como ‘agradecimento’ pela sua ajuda.
Sigismundo sempre confiou muito em Figueiredo, sem suas promessas. Achava uma pessoa sincera, de bom coração, que sempre lhe fazia o bem. Tudo isto independentemente do que os outros lhe diziam sobre seu caráter.
Então, nas vésperas das eleições, o coronel combina mais um comício com Sigismundo. O caboclo chega na praça central da cidade, em frente a antiga matriz, e o palanque está lá, montado, imponente, cheio de faixas e fotos do coronel. Figueiredo cumprimenta Sigismundo e lhe passa um papel, que seria o discurso que ele teria que fazer naquela tarde. Apesar de que as instruções já quase não eram mais necessárias, já que eram sempre os mesmos discursos e Sigismundo já havia decorado quase todos eles.
Quando o caboclo sobe no palanque e se aproxima do microfone a população fica entusiasmada em meio a gritos e aplausos. É quando Sigismundo começa:
-Meu povo! Venho aqui nessa tarde pedir o apoio de vocês. Todos sabem dos benefícios que o coronel Figueiredo vem nos trazendo em todos esses anos, e para que ele continue nos ajudando é que precisamos lhe ajudar. Se ele for eleito ele promete construir uma ponte na passagem do “Passa-quatro”...- é quando interrompe seu discurso.
Figueiredo se espanta: -O que aconteceu meu filho?
Sigismundo sussurra então no ouvido do coronel: -Doutor, não é por nada não, mas o senhor já prometeu essa ponte nas últimas eleições. Sei lá, me sinto meio mal, as pessoas ficam me cobrando como se fosse eu que tivesse prometido. Minha família também já ta ficando desconfortável com isso aí. Não posso falar outra coisa não?!
-Olha meu filho, pode falar com tranqüilidade que desta vez a ponte sai. E outra, se eu não for eleito aí é que num sai mesmo.
Sigismundo se volta para o público e continua:
-Então meu povo, para aqueles que se perguntam por que o coronel está prometendo isso de novo, se já prometeu na eleição anterior, lhes digo: Se a ponte não foi construída não foi por falta de vontade ou empenho de nosso governante, mas sim por dificuldades impostas por aqueles que não querem o bem de nosso povo. Doutor Figueiredo continuará lutando pelos nossos direitos, mas isso se o ajudarmos a continuar nos representando. Além disso, o coronel promete doar algumas partes de sua fazenda para os menos favorecidos desta cidade...- e Sigismundo para novamente.
-Doutor, isso aí também num dá não. Já falamos isso e o que o senhor fez foi na verdade comprar mais terra, e os que invadiram aquela região perto do rio Bonito, o senhor tirou na bala. Num tem outra coisa pra falar não?
-Olha meu filho, pode falar com tranqüilidade que dessa vez eu dôo as terras. E outra, se não for eleito aí que não vou ter poder pra desmembrar minha fazenda mesmo.
Sigismundo se volta para o público e continua.
-Então meu povo, para aqueles que se perguntam por que o coronel está prometendo isso de novo, se já prometeu na eleição anterior, lhes digo: Se as terras não foram doadas foi por empecilho da burocracia e por pressão de outros coronéis que acharam que, se o coronel fizesse isto, seriam obrigados a fazerem o mesmo. E digo mais: Eles são obrigados a fazer o mesmo. E não sou só eu que o digo, mas também o coronel Figueiredo, que vem brigando com esses crápulas que não querem nada mais do que o atraso e a miséria do nosso povo. Além disso, o coronel promete fazer um novo posto de saúde muito mais preparado para a nossa cidade...
Sigismundo se vira novamente para o coronel:
-Doutor, aí é demais. Isso não posso falar não. Mês passado uma menina da minha vizinha de porteira morreu porque não tinha o posto, e não atenderam ela no hospital da cidade aí do lado não. Agora temo que falar outra coisa, com isso aí não dá. Ta ficando chato pra minha família doutor. E pra mim também.
-Olha meu filho, se continuar assim questionando tudo, aí fica difícil agente trabalhar junto. Se to dizendo que vou fazer é por que vou fazer. E se não fiz antes foi por que não me deixaram, ou você não confia em mim?
-Opa, que é isso doutor?! Confio sim senhor.
-Então meu filho, continua com o discurso que do resto cuido eu. A não ser que você esteja desconfortável e queira parar de trabalhar comigo. Mas aí, você sabe como é meu filho, não vai dar mais pra te ajudar né?! Por mais que eu quisesse, mas sem trabalhar pra mim não tem como te ajudar de volta, não é?! Não seria justo com os outros. É o que sempre te falei, você me ajudando eu ajudo você e sua família. Ou não levei seus meninos pra conhecer os avós em Demerval Lobão?
-O! Levou sim senhor.
-E não paguei tudo?
-Pagou sim senhor.
-E cobrei alguma coisa a mais de você?
-Não cobrou não senhor.
-Então meu filho, continua com o discurso aí que do resto cuido eu.
Sigismundo fica quieto e pensativo ao microfone. A platéia começa a se olhar perguntando o que acontece, já que Sigismundo nunca antes havia interrompido um discurso ou uma história. É quando Sigismundo enche o pulmão e faz seu discurso mais inflamado e convicto de todos antes já vistos. Rebate, antes mesmo de ser questionado, todas as possíveis contradições do discurso ou promessas que não foram cumpridas. Ao final, Sigismundo está sem fôlego, mas olha para o lado e o coronel está com um sorriso também nunca antes visto.
Sigismundo se afasta do microfone e cumprimenta o coronel que, muito feliz, já no aperto de mão lhe passa algumas boas notas de reais.
-Muito obrigado meu filho. Agora que você me ajudou não vou medir esforços para ajudar você e sua família em tudo que for preciso.
-Obrigado doutor.
Sigismundo desce do palanque quando é parado por Alberto, seu velho amigo, que lhe pergunta:
-Onde tu vai Sigismundo, não vai lá pra festa do comício não?! O coronel compro de tudo pro povo.
-Brigado Alberto, mas preciso passar na venda comprar arroz e feijão la pra casa. Os filhos já devem ta chorando que não comeram nada ontem.

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