terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sobre o Haiti

Caros leitores,

Depois dos acontecimentos no Haiti, suponho que estejamos todos assombrados e preocupados com nossos quase-vizinhos. "A parte mais pobre de uma ilha muito pobre", foi uma definição que vi para o país, há algum tempo em um jornal. À primeira vista, para a população em geral que assiste a mídia necrófila, parece uma ironia de mal gosto de um suposto destino, uma manifestação de gaya como vingança pelo aquecimento global ou a demonstração da ira de Deus contra os homens. Mas - perguntou um antropólogo frente às hipóteses transcendentais - por que o Haiti?



O jornalista Clóvis Rossi, na Folha do dia 14, apresentou em seu texto uma idéia interessante, porém mal argumentada e, a meu ver, mal escrita. Disse ele: "a pobreza atrai o desastre". Talvez nada seja mais óbvio, mas cai bem uma pitada de senso crítico, uma atribuição humana e social ao tamanho do estrago, frente à facilidade de justificativas teológicas ou teleológicas.

Talvez seja essa a pior herança que temos da cultura medieval: uma ideologia que nos educa a atribuir o desconhecido e o trágico à transcendência, à sorte ou ao azar, ao destino, à vontade divina ("foi assim porque Deus quis, que posso fazer?"), à fatores intangíveis ("foi uma atividade da natureza, é inevitável"), etc. Contudo, assim como na idade média, ainda ignoramos o papel do homem, enquanto ser histórico, nesses acontecimentos. E ignorando-o, ignoramos também a capacidade humana de transformar realidades.

Não foi o primeiro nem o último terremoto na América Central. A possibilidade de um terremoto no Haiti era existente, assim como poderia ter acontecido em Tóquio. Mas será que um terremoto, de mesmo nível, ocasionaria a mesma desgraça em Tóquio, onde casas e prédios são preparados para esse tipo de incidente e a maioria da população possui moradia digna? Creio que não.

Nem Deus, nem gaya, nem o destino escolheu o Haiti. O que houve foi consequente de uma questão geológica, sem dúvida. Uma questão que existe por lá praticamente desde sempre. Mas os resultados foram catastróficos a esse ponto porque a grande maioria da população de lá nunca teve nem a oportunidade de viver em outro lugar, nem a condição social para viver em moradia digna, e muito menos para estar preparada para as catastrofes naturais, por mais previsíveis que elas fossem.

Atribuir tamanho caos apenas à geologia é como culpar o clima pela miséria do nordeste de nosso país. Em ambos os casos, é preciso que nos vejamos, enquanto seres humanos históricos, como co-responsáveis por uma estrutura que permite algo dessa magnitude. E, assim, nos sentiremos no dever de construir o novo. Rossi, parafraseando o espanhol Miguel Ángel Herrero, nos dá um bom exemplo:

"No Haiti, sempre segundo Herrero, o desastre, além do terremoto que ninguém podia mesmo evitar, 'foi causado também pelo 'dumping' que obriga os camponeses a abandonar seus campos de arroz em Artibonite e emigrar para capital, pelas condições em que se aglomeram centenas de milhares de pessoas em distritos como Cité Soleil ou Martissant, a falta de emprego para a maioria dos jovens em Porto Príncipe, os serviços sanitários que não cobrem as necessidades mais básicas da população, a insuportável inflação dos preços dos alimentos em 2008'."

Enquanto cristão, rezo pelas vítimas e sobreviventes do Haiti. Enquanto homem, lembro que a humanização, a efetivação plena do homem livre, ainda está longe de ser alcançada.

Uma boa semana,

Casmurro.


4 comentários:

  1. Sem luta não há justificativa plausível para nada em nossas vidas...

    =)

    "Nada acontece por acaso"

    ResponderExcluir
  2. Clóvis Rossi, à vezes pode até perder a vergonha, mas não a razão. Leia o artigo novamente com a ajuda de nossa estimada geografia para entender o que realmente está escrito ali: o autor distingue duas medições de escala, para um acadêmico não preguiçoso em ler, logo pensará: aí estão as escalas Richter e Mercalli. Ele aponta, por óbvio, a medição de Mercalli para justificar que pobreza atrai o desastre e não a de Richter e, isso, faz toda diferença!
    Clóvis diz que o terremoto é parte do desastre, mas o autor dispensa ao longo do texto a ênfase nessa consideração, partindo para outra lógica (ler escala Mercalli) e assim sendo justificando que fatores, não divinos, mas HUMANOS são preponderantes no ocorrido. Não entendi a idéia de onde entra o divino ou porque ele não se argumentou corretamente.
    Nem tudo o que o professor comuna de geografia diz deve ser desprezado, mas infelizmente os alunos latinos tendem a prestar atenção na aula errada. Se os livros de geografia não mudaram, como tenho certeza que não, os fenômenos geológicos ali a permitirem a ocorrência do terremoto, enviado seja pela natureza, gaya ou Deus, não está ali desde sempre! O Haiti está justamente sob uma falha geológica de duas placas tectônicas, placas que se moveram no processo de deriva continental, ou seja, nem estavam ali desde sempre e nem pelo sempre ali estarão. Fato: era pra acontecer o abalo sísmico.
    Perguntaria a Herrero: se tive ocorrido no campo o abalo sísmico, onde não há estrutura urbana e o dumping (ele se refere à idéia do “arroz americano” ter entrado no mercado haitiano e abalado com a economia agrária local), então se suporia que o dumping sobre o arroz (essa prática maliciosa do Tio Sam) teria ajudado a salvar milhares e milhares de vidas, pois permitiu a emigração para as cidades onde não teria ocorrido os abalos? – é bom observar a hipótese ao contrário, seguindo o mesmo raciocínio, porque assim a gente consegue levantar certas fraudes anômalas da intelectualidade.

    =)

    ResponderExcluir
  3. Muito pertinente o cometário.
    Só ressaltando que quando afirmei que a questão geológica que gerou o terremoto esta lá "PRATICAMENTE desde sempre", usei o "praticamente" para ressaltar a relatividade da afirmação. Ou seja, em relação à história do Haiti republicano, o processo de deriva continental ocorreu em velocidade extremamente lenta. A idéia na afirmação era ressaltar que o fato nada tinha de inesperado, dada a longevidade da questão. Em algum momento aconteceria um terremoto desse porte em algum lugar da América Central.

    Sobre a questão do divino, ela não está em Rossi. Eu a coloquei porque esse é o ponto da discussão: em tempos de desgraças nada mais comum que vermos as pessoas atribuindo as causas a tudo, menos à responsabilidade humana. Meu texto visa criticar esse fato, e a questão haitiana é o exemplo mais recente.

    Casmurro.

    ResponderExcluir
  4. Caro Casmurro,

    Ás vezes tentamos acender certos debates com palavras ainda bem verdes para chegarmos ao objetivo lá na frente. Poucos compreendem isso, é uma pena. Nunca foi o seu caso.
    Realmente centrei na ideia de que o terremoto no Haiti está situado em uma aera de conflito geológico entre duas placas americanas. Não duvide que tenha quem possa até contestar isso com despropósitos infundados apenas para praticar um pouco de suas maldades políticas. Assim como muitos enxergam as ações religiosas na ciência na Idade Média. Mas ficou claro sim que o seu DESDE SEMPRE não era de fato um DESDE SEMPRE, apenas me aproveitei dela, de certa forma bem microbiologicamente, se é que me entende. Pois bem.
    Esta semana, nosso estimado presidente Hugo Chávez, em um de seus momentos de maior lucidez, não poderia deixar de culpar quem? O TIO SAM! Não, não. Ele não culpou os EUA, como eu ingenuamente previ, acerca das conseqüências e do dumping na agricultura. Isso é para a galera ainda bastante jovem na esquerda. Ele foi além: o terremoto mesmo, o tremor, o sismo, ou seja lá que nome queiram dar para os chaqualhões, foram causados por MÁQUINAS AMERICANAS DE GUERRA QUE CAUSAM TERREMOTOS.
    Hugo disse em sua maior lucidez, porque ele, assim como , Clóvis, também não perdeu a razão. Este é o estado mais lúcido que aquele chefe de estado pode atestar.
    Na IDADE MÉDIA o discurso era religioso de um lado e cientifico de outro. Hoje, com certas proposituras, temos política de um lado e ciência do outro. Deus já ficou démodé.
    Não estou atestando tendência. Mas antes mesmo de Hugo prestar sua contribuição à humanidade com essas ideias, eu já previa que aquilo iria cheirar mal. Por isso quis me ater a premissa básica dos entendimentos entre geólogos sobre as causas dos incidentes, que como você mesmo disse: era para acontecer.
    A não ser que todos os estudos da área estavam previamente infectados por cientistas vendidos que de antemão ensinaram todo mundo errado apenas para aliviar a barra das conseqüências provocadas pelas armas do “grande império”.
    Não esqueçamos: justamente o país que mais está contribuindo, dispondo-se e colocando dinheiro lá, novamente, em plena posmodernidade é culpado pelo incidente de cabo a rabo.
    Deixamos de cultuar e obedecer a Deus para ajoelharmos para a insanidade de certos golpistas e grupos políticos delirantes?

    Fica a minha dúvida.

    ResponderExcluir