quarta-feira, 22 de abril de 2009

O Verão é a Capa dos Pobres

As significações da literatura são muitas.

Proposições estéticas variadas com os mais diversos intuitos e finalidades...

isso quando há finalidades.

Posto isso, devaneio inútil, vamos à um texto, sucinto....prometo.


"Almocei na fronteira do ar livre, rente a uma janela aberta. Era já o meio da tarde, e o restaurante estava deserto: o sol prendera-me na praia, envolvera-me de torpor, e entre o banho e a areia se tinham escoado as horas. É uma sensação agradável esta de ter o corpo um pouco áspero de sal, a antegozar o duche que nos espera em casa. E enquanto a costeleta de vitela não vem, vai-se beberricando o vinho fresco e estendendo a manteiga em bocadinhos de pão torrado, para enganar a fome subitamente acordada. Vida boa.

O momento é tão perfeito que podemos falar de coisas importantes sem que as vozes tenham de subir, e nenhum de nós pensa em ganhar no diálogo e ter mais razão do que a pode ter um comum ser humano que respeite a verdade. Além disso, é verão e, como eu disse, estamos na fronteira do ar livre. A aragem faz estremecer umas plantas cheirosas a que podemos chegar com os dedos e em volta das quais zumbem os insectos do tempo. Quebrada pela folhagem, há uma réstia de sol que se derrama pelas madeiras envernizadas da janela. Vida boa.

Temos a pele doirada e sorrimos muito. No interior do restaurante levanta-se uma grande labareda: é a cozinha que oferece os seus mistérios. Logo a seguir o empregado traz a costeleta, rescendente no seu molho natural, e nós infringimos as mais comezinhas regras da gastronomia mandando adiantar-se mais vinho branco. E ela vem, a garrafa, com a sua transpiração gelada e o truque mágico de embaciar os copos que a recebem. Ah, vida boa, vida boa.

Estamos agora calados, absorvidos na delicada operação de separar a carne do osso. Sob o gume da faca as fibras macias separam-se sem custo. O molho penetra nelas, aviva-lhes o sabor-oh, que bom é comer assim, depois de um ardente dia de praia, no restaurante de janelas abertas, com perfumes de flores e este cheiro maior do verão.

Voltamos a conversar, dizemos coisas vagas e lentas, inteligentes, numa plenitude de bem-aventurados. O sol, que desceu um pouco mais, desliza nos copos, acende fogos no vidro e dá ao vinho uma transparência de fonte viva. Sentimo-nos bem, com o restaurante só para nós, rodeados de madeiras fulvas e toalhas coloridas.

É nesta altura que se dá o eclipse. Uma sombra interpõe-se entre nós e o mundo exterior. O sol afasta-se da mesa violentamente, e a mão de um homem passa a moldura da janela, avança e fica imóvel por cima da mesa - de palma para cima. O gesto é simples e não traz palavras a acompanhá-lo. Apenas a mão estendida, à espera, pairando como uma ave morta sobre os restos do almoço.

Ninguém fala. A mão recolhe-se apertando a esmola, e, sem agradecer, o homem afasta-se. Entreolhamo-nos devagar, com os lábios deliberadamente cerrados. De repente, tudo sabe a inútil e a cobardia. Depois, com mil cautelas, pegamos no carvão em brasa. Se não estivéssemos a almoçar, teríamos dado a esmola? E que teria acontecido se a recusássemos? Sentiríamos depois mais remorsos que de costume? Ou houve simplesmente o medo de que a mão seca e escura descesse como um milhafre sobre a mesa e arrancasse a toalha, no meio do estilhaçar dos vidros e das louças, num interminável e definitivo terramoto?"

José Saramago - A Bagagem do Viajante.



Este breve conto é um exemplo da delicadeza com que o autor se vale para tratar de temas tão densos.

A aprecisação de um bom vinho...
Boa comida...
Boa culinária...
Boa conversa...
Boas companhias...

Que o mundo se exploda?!

Quando menos esperamos, o mundo bate à porta, ou melhor, põe a mão sob a sua mesa.
Estraga seu jantar, sua comida, sua conversa.

Faz você lembrar de um mundo que até então havia esquecido, não visto...um mundo que preferia não enxergar.

O mundo nos mostra a cara e de repente o condenamos por ele ser o que ele é, quando ele só é um resultado daquilo que somos...e sendo assim, colocamos em cheque a única 'função' da realidade, que é simplesmente ser...

Este ser da realidade que nos incomoda....preferiríamos fazer parte de um outro ser...um ser que não é real...
um ser que construímos em um belo jantar, com uma bela comida, com boas companhias....

E que por favor a realidade não bata à porta nestas breves construções estéticas do meu próprio ser!

9 comentários:

  1. que a relidade se mantenha à distância de todos nós!

    bravíssimo caro Calvin...

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  2. que fique longe de mim, esta tão terrível realidade.

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  3. Acho o contrário: que a realidade apareça sempre enquanto existir! Para assim todos fazerem o possível para amenizá-la e então ela só desapareça quando deixar de existir.

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  4. tem coisas que chamamos de IRONIA caro quincas...

    rs

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  5. eu gostei muito do modo que tu retoma o conto e enfia um pouco mais a agulha na gente. a agulha que o conto trouxe, e que dói tanto.

    mas a gente precisa da dor.

    o próprio saramago diz que quando ele escreve sobre isso, sobre essa realidade, é quando ele fala do mármore do ser humano. como se o ser humano fosse uma estátua, e, ele cansado de descrever esta estátua, parte pro mármore. porque é mármore, aquilo que o ser humano tem por dentro, é que lhe interessa.

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  6. Não use crase antes de palavras masculinas!

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  7. Delicie-se nos poucos momentos em que você não esta na realidade meu caro.

    Viva no seu mundo com seu tigre de pelúcia, até a mão da realidade tocá-lo.

    O que tudo vê!

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  8. por favor, desconsirem erro gramaticais...juro não ser o meu forte...mas obrigado pela orientação

    rs

    abs

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  9. os linguistas diriam que o que importa é a comunicação efetiva.
    e ta bem comunicado. =)

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